sábado, 5 de abril de 2014

O amanhã chegará, e será outro dia...

Esta semana foi importante, e eu tinha esquecido. Eis que, agora, distraído e a escrever sobre outros assuntos, Chico (ele mesmo, o Buarque), acabou de me lembrar dessa coisa tão importante. Inadvertidamente, como deve ser com todas as coisas que são importantes.

Ele lembrou-me que essa semana fez 50 anos daquilo a que o Itaú chama revolução, mas que eu, que ainda sou capaz de pensar, prefiro chamar de golpe.

Apesar de você, hoje é outro dia. E como estrangeiro, quase brasileiro, já carioca (talvez nem tanto, mas é aqui que pago impostos), recordo-me que isso também me diz respeito. Afinal, todos os defeitos que aponto à cidade, ao país, ao povo (ao qual gosto de pensar que também já pertenço, ainda que de forma distinta em grau, gênero e número...) nunca serão suficientemente compreendidos se não for esclarecida a importância desse golpe para vida coletiva da sociedade brasileira. Qual o peso desse "Apesar de você"...

Não que ache que tenha competência para o fazer; com certeza que não, muitos vão até dizer "nem és brasileiro...". Problema deles, afinal há uma ideia sobre a qual estou seguro: a ideia de que, como disse uma amiga minha, esse golpe interrompeu de forma vil o processo de amadurecimento democrático da sociedade brasileira (ela não disse nestas palavras, e o "vil" enquadra-se totalmente na minha licença poética).

De fato, parece-me que essa é a ideia essencial a reter. O legado do golpe, esse legado maldito que nenhum suposto milagre econômico seria capaz de apagar, vai muito além das pessoas mortas e desaparecidas; da dor dos seus familiares; da dor coletiva da sangria cultural e científica.

Com exceção das vidas humanas para sempre prejudicadas, das vitimas e seus familiares, sem dúvida que a pior maldição que esses vilões no poder deixaram a este país, foi a interrupção do crescimento cívico do Brasil. Uma sociedade completamente extirpada, literalmente, de um dia para o outro, das suas lideranças.

Que não fossem, talvez, os melhores lideres do mundo... Talvez! Provavelmente, até... Mas eram pessoas com uma história pública democrática, que seriam escrutinadas pela população, que seriam desafiadas por novas lideranças, nascidas numa sociedade livre e democrática...

Parte substancial desses atores coletivos se perdeu, na guerrilha, no exílio, pela repressão...

E, ao final dos "anos de chumbo", a conta chega sempre para ser paga... Regressados ao Brasil, os tempos mudaram, as ideias mudaram, e os sobreviventes dessa geração de lideres, políticos e culturais, encontraram um país diferente. É interessante ouvir a entrevista de Tom Jobim, e sentir isso nas entrelinhas... (https://www.youtube.com/watch?v=DoVAdtnxse4)...

Os anos seguintes, com a grave crise econômica que o Brasil atravessava, também não permitiram um aprofundamento da vida pública e, talvez, talvez tenham até contribuído para acentuar esse descaso que se vive neste país, acerca da necessidade de construção de uma vida coletiva...

Aquilo que os militares fizeram foi, de fato, ressaltar um hábito bem português: o do desinteresse com os assuntos públicos. A falta desse descaso (pelo menos nos grandes centros urbanos.. A esse propósito, o século XX brasileiro é bem profícuo em reviravoltas e revoltas, nem sempre tão claras e bem explicadas para alguém que chegou agora a essa história tão rica....), foi, curiosamente, o que levou os golpistas de 64 a interferir no governo do país.

É inevitável, assim, ver o que aconteceu "apesar de você"...

Sem dúvida que o céu clareou; que o ar está mais respirável; sem dúvida que agora já estamos em outro dia dia! Um dia bem melhor, sem dúvida...

Mas restos de sombria tristeza e melancolia, impingidos por algumas nuvens cinzentas, que ali estavam, e ali permaneceram, fazem com que esse dia, se mais alegre, não seja um daqueles dias de verão e praia de que todos os brasileiros gostam (mesmo os do interior, quando podem, claro...).

Isso porque, olhando para as manifestações do ano passado, aprendemos que "apesar de você", as populações podem sair às ruas para protestar, se manifestar. Mas, "por causa de você", elas não sabem o que fazer, como fazer, o que querer...

E esse desnorte é, sem dúvida, o pior legado da ditadura militar: a ausência de noção de condução da vida pública pela política.

Com honrosas exceções, normalmente ligadas à esquerda mais à esquerda, a verdade é que a política, para o cidadão comum é só corrupção; uma boa forma de se dar bem; e que o problema do país se resolve com saúde e educação, da mesma forma que dor de cabeça se resolve com aspirina: só tomar e pronto!

É curioso ver como, para a maioria da classe média, que teve oportunidade de estudar, de ter formação, de ter acesso a uma vida mais confortável, o padrão de vida, o seu projeto político consiste em imitar os EUA ou a Europa... Seja pelos carros ou pelos bens de consumo baratos, no primeiro caso, ou pela comida e segurança, no segundo... (nota do autor: este trecho deve ler-se com ironia)

Que dizer deste posicionamento? Que dizer desta incapacidade de perceber que, para chegar a esse ponto, ambas as sociedade passaram por processos dialéticos severos, profundos e, até, violentos? Que, a duras penas, os cidadãos foram aprendendo a dialogar coletivamente?

Com as ressalvas já apontadas, acima, o pior legado dos militares foi deixar cidadãos que não sabem pensar politicamente a cidade. E essa é a principal razão pela qual estamos onde estamos (se me dão licença, claro...). E só vamos sair daqui quando as pessoas perceberem que não precisamos de educação, precisamos de saber como queremos e o que queremos da educação; que não precisamos de saúde, precisamos de saber o que queremos da saúde; que não precisamos de segurança, precisamos de saber como criar condições para que haja segurança.

Precisamos de política.

E é essa falta de consciência política, que se resume bem na ideia de que "não vale a pena fazer nada...", a pior maldição do Brasil... É claro que é bom ver as pessoas na rua, a protestar, a manifestar a sua opinião, o seu posicionamento... Mas também é triste ver essa horda gigantesca de gente a vaguear, a ser atacada pela policia, a atacar os partidos políticos...

Em cada uma dessas ações podemos ver a assinatura desse golpe de 64; até com registro de propriedade intelectual!

Aquilo que os militares fizeram foi, afinal, influenciar a vida comunitária do Brasil durante, pelo menos, os 50 anos seguintes... É a sua influência maligna que vemos em toda essa confusão que faz com que as pessoas não entendam que não adianta manifestar-se contra a copa; o que é necessário é atuar na formação das decisões, mesmo contra a copa...

Aquilo que falta é que uma "água nova brote", uma nova atitude perante a vida pública, que entenda que a política começa, afinal, no buraco da nossa rua.

No dia em que isso for possível, sem dúvida, poderemos sorrir, porque o amanhã chegará, e será, finalmente, outro dia... Diferente deste dia meia boca que está hoje, ainda assim, um dia melhor que o de ontem...

Finalmente, depois deles...

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