segunda-feira, 7 de abril de 2014

O Ruanda aqui ao lado...

Vinte anos do massacre do Ruanda. 800.000 pessoas mortas, assassinadas. Em massa. Hoje não se celebra essa data; recorda-se, com tristeza profunda essa data. E outras, anteriores e posteriores.

Anteriores e posteriores, sim, porque eles não param de ocorrer. Infelizmente.

Como explicar um fenómeno desses? Como explicar esse desejo profundo de matar um igual? Continua a ser um dos maiores mistérios da humanidade... Como explicar esta vontade inexplicável (repararam na contradição?) de, de tempos em tempos, nos matarmos uns aos outros...

Não pretendo ser puritano, e cair em lugares comuns do politicamente correcto. Pretendo ser prático e homenagear as pessoas que, no Ruanda, em Lampedusa, no médio oriente, nas favelas do Rio de Janeiro ou de São Paulo, continuam a perder a vida, diariamente, sem que nada o justifique.

E, sendo prático, parece-me que a melhor forma de homenagear essas pessoas é denunciando os casos de abusos que continuam a ocorrer, como já disse acima (repito apenas porque nunca é demais lembrar...), diariamente.

Eu poderia fazer o mais simples, apontar para fora, falar da hipocrisia da «Fortaleza Europa», politica que mata pessoas em busca de uma vida melhor, por exemplo. E, infelizmente poderia ficar aqui demasiado tempo, a dar exemplos, e exemplos, e exemplos de como, em todo o mundo, as pessoas continuam a perder a vida em virtude da frieza alheia...

Mas, sendo prático, parece-me que a melhor forma de homenagear as vitimas é falar do que acontece aqui, bem próximo da maioria das pessoas que lêem este texto, no Rio de Janeiro.

Hoje circulou uma imagem de um grupo de crianças sendo revistadas por militares do exército, na ocupação do complexo de favelas da Maré. Estamos a falar de crianças que deveriam ter, no máximo, de 6 a 8 anos. Isso é um absurdo.

Claro, desde logo, um absurdo praticado por quem põe crianças a servirem de transporte para a prática de condutas ilícitas. É claro que isso está errado, e não podemos fingir que não reparamos no erro atroz do individuo que faz uma coisa dessas. Mas note-se, essa é uma atitude vinda de pessoas desesperadas; com formação pessoal deficitária; ou, até maníacos completos! Não devemos esperar outra coisa deles... Muitas vezes estão, simplesmente, a tentar sobreviver.

Mas não eram esses homens, os bad guys (vamos por isto em linguagem de filme americano... os bons contra os maus...), que estavam de fúzil a revistar crianças. Pasmem-se (sarcasmo): eram os good guys!!! Os bons rapazes, eram eles que estavam a deixar a sua pegada psicológica, para sempre, na cabeça daquelas crianças. E isso é inaceitável.

É inaceitável a falta de cuidado do Estado, a falta de preparação da operação, pensada apenas em termos militares. Inaceitável que o Estado se coloque nesta situação.

Falando claramente, e porque não vale a pena ser demagógico; se é necessário revistar as crianças, que se revistem. Mas o Estado deve assegurar a integridade do indivíduos na sua acção. Especialmente quando estamos a falar de crianças.

Ou seja, isso significa, no caso concreto, tratar aquelas crianças com o necessário cuidado, com carinho... Afinal estamos a tratar das futuras gerações! Não é óbvio?

Será que nenhum dos responsáveis se lembrou de que seria importante retirar as armas daquele ambiente? Será que ninguém se lembrou de que as pessoas que iriam lidar com as crianças não deveriam estar fardadas com os seus camuflados?

Será que ninguém se lembrou que quem deveria cumprir esse papel invasivo não deveriam ser os militares ou a policia; não era óbvio que deveriam ter sido psicólogos e o próprio pessoal das escolas a realizar essa tarefa?

O que aconteceu? Faltou planejamento? Não houve tempo de organizar profissionais de todas as áreas para que a intervenção pudesse ser o menos traumática possível?

A copa está demasiado perto? É pura insensibilidade, falta de tacto? Ou, a pior das hipóteses, simplesmente não quiseram saber?

Acham que já não é suficientemente marcante, aterrorizador, traumatizante, ver um tanque de guerra na porta da vossa casa?

Não é nem preciso lembrar de que essa ocupação só está a ser feita por causa da copa, e de que ninguém está preocupado com as pessoas e com aquilo que irá acontecer depois da copa e das olimpíadas.

É a desumanização das pessoas, dos... humanos.

E é assim que voltamos ao Ruanda. Afinal ele sempre esteve aqui, na nossa porta, e com este tipo de atitudes, continuará a estar.

Aqui também morreram pessoas. Não importa se foram menos de 800.000. Na verdade essa comparação é irrelevante. Ainda que tivesse sido uma pessoa, já seria mau demais... E com a continuação/intensificação das antigas politicas de segurança, as pessoas continuarão a morrer.

Afinal, o Ruanda é na nossa porta, e continua a ocorrer diariamente, seja com milícias, facções criminosas, a policia...

E não adianta fazer reportagens, e noticias, lembrando esse evento tão triste. A melhor homenagem a fazer é lembrar que, aqui, ao nosso lado, continuam a morrer pessoas em razão do descaso da humanidade. E que, enquanto mais uma geração de jovens cresce traumatizada, nós estamos enclausurados nos nossos condomínios, cheios de grades e seguranças, olhando para o Ruanda e perguntando:

«Como foi possível?»

Sem perceber que não é preciso olhar longe, que a resposta está logo aqui, do nosso lado...

domingo, 6 de abril de 2014

Sr. Deputado, Sr Senador...

Hoje, mais cedo, ao ler o jornal, vi uma noticia /comentário, extremamente interessante, feito pelo Élio Gaspari; podem ver lá, pág. 6 do O Globo de hoje.

Quem quiser ir ver lá, no original, pode ir lá agora; mas voltem rápido para continuarmos aqui.

Quem não viu, mas acha que dá muito trabalho ir lá agora ver a noticia, não tem problema, eu conto aqui rapidamente. 

O que acontecee é que, na terça passada, o congresso teria aprovado uma medida provisória (MP 627), à qual foi enxertada uma regra especifica para o cálculo das multas pecuniárias impostas às seguradoras de saúde.

Uma anistia parcial para as seguradoras que não cumprem os contratos. Como bem caracterizou o jornalista, é disso que se trata.

Basicamente, na forma original da Lei, e como é normal, para cada infração cometida pelo operador, ser-lhe-ia imputada uma multa.

Ocorre que, por qualquer expediente (no mínimo, expediente pouco ético...), algum iluminado parlamentar fez inserir uma norma tipo promoção: leve dois pague um. Então, e no lugar daquilo que seria normal (uma infração, uma multa), passa a ser aplicável a regra de uma multa para um determinado conjunto de infrações. Fenomenal. Brilhante.

Basicamente é isso; e como já estamos aqui todos, os que ficaram, e os que foram ver o original da noticia, podemos prosseguir.

Não é o meu objetivo entrar naquele discurso fácil e demagógico em que todos são corruptos, que já bem conhecemos. É verdade que os parlamentares que cozinharam esta norma, contrária ao Direito, à Justiça e, acima de tudo à ética, não me deixaram uma tarefa fácil. Mas vamos lá.

Vamos imaginar que os queridissímos parlamentares estivessem de boa fé quando propuseram esta norma; vamos imaginar, ainda, sequer que eles entendessem a necessidade da racionalização e vamos fazer em seguida.

Por isso, a partir de agora, eu escrevo em especial para o Sr. Deputado/Senador que propôs essa norma tão... curiosa. Vamos manter a polidez e adjetivar a norma dessa forma:Curiosa...

Amigo Deputado/Senador,

Está definitivamente ultrapassada (será?) a ideia de que o Estado não deve desempenhar um papel regulador no funcionamento do mercado. Ele tem, sim, um papel fundamental enquanto moderador e de correição de algumas externalidades negativas que o mercado cria.

O que isto quer dizer, Sr. Deputado/Senador? Isto quer dizer que o Estado deve agir aplicando multas para que os players do mercado, especialmente num mercado de reduzida competição, como é o caso do Brasil, não se preocupem apenas com custos, lucros, mas também com a qualidade dos serviços prestados aos seus clientes.

Mas como assim? As empresas não se preocupam com a qualidade dos seus serviços e com a satisfação do seus clientes? Amigo Deputado/Senador, eu sei que a resposta a essa pergunta deveria ser uma obviedade, mas hoje, infelizmente, em nenhum lugar do mundo, ela é. Seja pela pouca competição do mercado, seja pela pouca exigência dos consumidores, seja por opção econômica dessas companhias, a verdade é que a massificação dos serviços não tem favorecido a sua qualidade...

Sim, com prejuízo dos clientes; dos cidadãos, exatamente.

Uma das regras básica da economia é a de que os agentes atuam racionalmente; mas, infelizmente, essa racionalidade é vista como uma autorização para um desmedido suprimento das próprias necessidades/maximização do próprio beneficio. Em linguagem corporativa, aumentar os lucros.

E no prazo mais curto possível; raramente alguém pensa além de resultados trimestrais...

Assim, o que acha que pensa o CEO de uma empresa? Vou gastar mais dinheiro, aumentando a qualidade do serviço que presto; ou, alternativamente, vou cortar os meus custos, oferecendo um serviço pior, mas aumentando a rentabilidade e os lucros da empresa, deixando satisfeitos e felizes os meus acionistas/patrões (cheios de dividendos...)?

A opção, como é óbvio, é a segunda alternativa. E é aqui que entra o Estado.

Então, o que é que o Estado está a fazer ao aplicar estas sançôes de natureza econômica? Ele está a criar um incentivo para que as empresas entendam que é mais vantajoso aumentar a qualidade dos seus serviços, do que descumprir as suas obrigações.

E este tipo de politicas funciona.

E esta tentativa de aprovar esta norma demonstra que sim, estas politicas funcionam realmente. E o Estado está, por isso a exercer corretamente o seu papel de correção dessas externalidades.

É por isso, Sr. Deputado/Senador, que o Sr. fez uma coisa errada, muito errada que, esperemos, seja corrigida a tempo.

Agora imaginando que as coisas funcionaram normalmente, e que o nosso querido Deputado/Senador, atuou intencionalmente e de má-fé para atender aos interesses corporativos das empresas de seguro de saúde.

Nada de novo, fica apenas demonstrado, mais uma vez, o que todos já sabemos: que a democracia se encontra arregimentada pelos interesses corporativos; que estamos, a nivel global, presos entre a espada e a parede.

Uma boa forma de começar, seria pelo fim do financiamento das campanhas politicas por pessoas jurídicas (afinal, ao que se sabe, essas entidades não votam... «Deve ser lido em tom irónico»). Mas não é suficiente, como é obvio.

O primeiro passo, e mais importante, seria que os deputados/senadores que fazem estas coisas não estivessem nessa condição... Ou estando, que tivessem aquela coisa chamada ética...

Como não espero que nenhum milagre aconteça, e os deputados/senadores adquiram, de repente, qualidades que não possuem (transparência, independência...), resta-nos esperar que a separação de poderes funcione...

sábado, 5 de abril de 2014

O amanhã chegará, e será outro dia...

Esta semana foi importante, e eu tinha esquecido. Eis que, agora, distraído e a escrever sobre outros assuntos, Chico (ele mesmo, o Buarque), acabou de me lembrar dessa coisa tão importante. Inadvertidamente, como deve ser com todas as coisas que são importantes.

Ele lembrou-me que essa semana fez 50 anos daquilo a que o Itaú chama revolução, mas que eu, que ainda sou capaz de pensar, prefiro chamar de golpe.

Apesar de você, hoje é outro dia. E como estrangeiro, quase brasileiro, já carioca (talvez nem tanto, mas é aqui que pago impostos), recordo-me que isso também me diz respeito. Afinal, todos os defeitos que aponto à cidade, ao país, ao povo (ao qual gosto de pensar que também já pertenço, ainda que de forma distinta em grau, gênero e número...) nunca serão suficientemente compreendidos se não for esclarecida a importância desse golpe para vida coletiva da sociedade brasileira. Qual o peso desse "Apesar de você"...

Não que ache que tenha competência para o fazer; com certeza que não, muitos vão até dizer "nem és brasileiro...". Problema deles, afinal há uma ideia sobre a qual estou seguro: a ideia de que, como disse uma amiga minha, esse golpe interrompeu de forma vil o processo de amadurecimento democrático da sociedade brasileira (ela não disse nestas palavras, e o "vil" enquadra-se totalmente na minha licença poética).

De fato, parece-me que essa é a ideia essencial a reter. O legado do golpe, esse legado maldito que nenhum suposto milagre econômico seria capaz de apagar, vai muito além das pessoas mortas e desaparecidas; da dor dos seus familiares; da dor coletiva da sangria cultural e científica.

Com exceção das vidas humanas para sempre prejudicadas, das vitimas e seus familiares, sem dúvida que a pior maldição que esses vilões no poder deixaram a este país, foi a interrupção do crescimento cívico do Brasil. Uma sociedade completamente extirpada, literalmente, de um dia para o outro, das suas lideranças.

Que não fossem, talvez, os melhores lideres do mundo... Talvez! Provavelmente, até... Mas eram pessoas com uma história pública democrática, que seriam escrutinadas pela população, que seriam desafiadas por novas lideranças, nascidas numa sociedade livre e democrática...

Parte substancial desses atores coletivos se perdeu, na guerrilha, no exílio, pela repressão...

E, ao final dos "anos de chumbo", a conta chega sempre para ser paga... Regressados ao Brasil, os tempos mudaram, as ideias mudaram, e os sobreviventes dessa geração de lideres, políticos e culturais, encontraram um país diferente. É interessante ouvir a entrevista de Tom Jobim, e sentir isso nas entrelinhas... (https://www.youtube.com/watch?v=DoVAdtnxse4)...

Os anos seguintes, com a grave crise econômica que o Brasil atravessava, também não permitiram um aprofundamento da vida pública e, talvez, talvez tenham até contribuído para acentuar esse descaso que se vive neste país, acerca da necessidade de construção de uma vida coletiva...

Aquilo que os militares fizeram foi, de fato, ressaltar um hábito bem português: o do desinteresse com os assuntos públicos. A falta desse descaso (pelo menos nos grandes centros urbanos.. A esse propósito, o século XX brasileiro é bem profícuo em reviravoltas e revoltas, nem sempre tão claras e bem explicadas para alguém que chegou agora a essa história tão rica....), foi, curiosamente, o que levou os golpistas de 64 a interferir no governo do país.

É inevitável, assim, ver o que aconteceu "apesar de você"...

Sem dúvida que o céu clareou; que o ar está mais respirável; sem dúvida que agora já estamos em outro dia dia! Um dia bem melhor, sem dúvida...

Mas restos de sombria tristeza e melancolia, impingidos por algumas nuvens cinzentas, que ali estavam, e ali permaneceram, fazem com que esse dia, se mais alegre, não seja um daqueles dias de verão e praia de que todos os brasileiros gostam (mesmo os do interior, quando podem, claro...).

Isso porque, olhando para as manifestações do ano passado, aprendemos que "apesar de você", as populações podem sair às ruas para protestar, se manifestar. Mas, "por causa de você", elas não sabem o que fazer, como fazer, o que querer...

E esse desnorte é, sem dúvida, o pior legado da ditadura militar: a ausência de noção de condução da vida pública pela política.

Com honrosas exceções, normalmente ligadas à esquerda mais à esquerda, a verdade é que a política, para o cidadão comum é só corrupção; uma boa forma de se dar bem; e que o problema do país se resolve com saúde e educação, da mesma forma que dor de cabeça se resolve com aspirina: só tomar e pronto!

É curioso ver como, para a maioria da classe média, que teve oportunidade de estudar, de ter formação, de ter acesso a uma vida mais confortável, o padrão de vida, o seu projeto político consiste em imitar os EUA ou a Europa... Seja pelos carros ou pelos bens de consumo baratos, no primeiro caso, ou pela comida e segurança, no segundo... (nota do autor: este trecho deve ler-se com ironia)

Que dizer deste posicionamento? Que dizer desta incapacidade de perceber que, para chegar a esse ponto, ambas as sociedade passaram por processos dialéticos severos, profundos e, até, violentos? Que, a duras penas, os cidadãos foram aprendendo a dialogar coletivamente?

Com as ressalvas já apontadas, acima, o pior legado dos militares foi deixar cidadãos que não sabem pensar politicamente a cidade. E essa é a principal razão pela qual estamos onde estamos (se me dão licença, claro...). E só vamos sair daqui quando as pessoas perceberem que não precisamos de educação, precisamos de saber como queremos e o que queremos da educação; que não precisamos de saúde, precisamos de saber o que queremos da saúde; que não precisamos de segurança, precisamos de saber como criar condições para que haja segurança.

Precisamos de política.

E é essa falta de consciência política, que se resume bem na ideia de que "não vale a pena fazer nada...", a pior maldição do Brasil... É claro que é bom ver as pessoas na rua, a protestar, a manifestar a sua opinião, o seu posicionamento... Mas também é triste ver essa horda gigantesca de gente a vaguear, a ser atacada pela policia, a atacar os partidos políticos...

Em cada uma dessas ações podemos ver a assinatura desse golpe de 64; até com registro de propriedade intelectual!

Aquilo que os militares fizeram foi, afinal, influenciar a vida comunitária do Brasil durante, pelo menos, os 50 anos seguintes... É a sua influência maligna que vemos em toda essa confusão que faz com que as pessoas não entendam que não adianta manifestar-se contra a copa; o que é necessário é atuar na formação das decisões, mesmo contra a copa...

Aquilo que falta é que uma "água nova brote", uma nova atitude perante a vida pública, que entenda que a política começa, afinal, no buraco da nossa rua.

No dia em que isso for possível, sem dúvida, poderemos sorrir, porque o amanhã chegará, e será, finalmente, outro dia... Diferente deste dia meia boca que está hoje, ainda assim, um dia melhor que o de ontem...

Finalmente, depois deles...